Via Roberto Campos como um monstro.
Hoje, percebo que em muitas coisas ele tinha razão.
Uma delas é a Petrobras. Não foi vendida por FHC, foi ocupada por Lula e delapidada por Lula e Dilma.
Agora, o litro da gasolina custa R$ 3, a empresa perdeu R$ 180 bilhões em valor de mercado e continua esse tempo todo sem pagar um centavo em impostos.
Outra visão de Campos que me indignava era sobre os movimentos sociais. Hoje, leio os textos dele sobre o assunto e fico com vergonha da minha ignorância e inconsequência juvenil.
A sociedade civil
Roberto Campos
18/04/1999
Se há um termo
que tem sido estropiado por usos e abusos é "sociedade civil". Antes
de servir de bandeira para rebeldia da turma do "si hay gobierno, soy
contra", ele teve uma história curiosa. Muita gente o associa, por via de
Marx, a Hegel. Mas quem primeiro falou nisso foi um inglês chamado Adam
Ferguson, em 1767, no seu "Ensaio Sobre a História da Sociedade
Civil".
Não é uma peça
moderna. No estilo moralístico da época, discorre sobre as virtudes do homem em
sociedade. A sociedade civil, tal como ele a entende, é o oposto do indivíduo
isolado, este mais ou menos como os animais brutos. Naqueles saudosos tempos em
que ainda não se falava em etologia animal, sociologia, antropologia e muito
menos em psicanálise, era assim que parecia: "Ele (o homem) goza a sua
felicidade dentro de certas e determinadas condições, e tanto como um indivíduo
isolado ou como membro da sociedade civil deve seguir um curso específico para
colher as vantagens da sua natureza". De certo modo, sociedade civil era a
condição do homem da cidade, que está na origem da palavra "cidadão".
Inocente Ferguson!Foi Hegel quem inventou um outro sentido que se prestou a
fácil desvirtuamento. A monarquia prussiana, da qual era súdito apreciado, se
sentia (como todas as monarquias absolutas) justificada por si mesma, de modo
que o governo aparecia, por assim dizer, como algo paralelo à sociedade
"civil", e, de certo modo, dela independente, uma vez que não tirava
dela a sua legitimação. Mas, naturalmente, há tantos Hegels quanto cabeças que
o interpretem.
Um marxista
francês muito famoso há três décadas, hoje meio esquecido, L. Althusser, em
"Por Marx" (1962), chega à beira da caricatura, construindo como
idéia hegeliana, em cada sociedade, duas sociedades embutidas: a das
"necessidades" (ou da economia), que seria a sociedade civil, e a
"sociedade política", ou o Estado, com tudo o que este compreendia:
religião, filosofia, ideologia, em suma, a consciência que cada época tem de si
mesma. Ou seja, vida material, de um lado, e espiritual, de outro. Só que, no
pensar de Hegel, a primeira dessas sociedades seria um "truque da
Razão", e a segunda delas é que constituiria a condição de possibilidade
daquela. Marx, é claro, como todo o mundo sabe, achou que podia inverter a
equação e fazer do lado material das coisas a essência do lado
político-ideológico.
Hoje, estamos
cansados desses exercícios e não achamos que as suas obscuridades e confusões
justifiquem as pessoas se matarem umas às outras (exceto, é claro, para os que
sentem grande apetite de poder). O caminho começa com generalidades e absolutos
e termina no gulag e no "paredón", da mesma forma que séculos atrás
terminava em fortuna e fogueiras. Foi uma longa andança da humanidade até as
idéias democráticas modernas, que surgem com a autonomia do indivíduo diante da
Coroa e com os primeiros pensadores liberais do Século 17, que na Inglaterra
inverteram essa maneira de ver.Hoje, a expressão "sociedade civil"
começou a servir a grupos e a finalidades em relação aos quais manter alguma
desconfiança é prudência cautelar.
Diversas
variedades de esquerdas e adjacências passaram a usar a expressão para
subentender uma separação intratável entre o "governo" e aquilo que
chamam de "sociedade civil" _ e, portanto, para contrabandear a
noção, que fica implícita, mas sempre presente, da ilegitimidade básica de
todas as autoridades e leis que não sejam as deles mesmos. Mas, parodiando o
Evangelho, muitos são os chamados e poucos os escolhidos. Liberais americanos,
por exemplo, vêm usando o termo no sentido de civilidade, tolerância _ boas
maneiras, em suma, politicamente corretas...Obviamente, uma sociedade
"civilizada" (no sentido de nossos valores ocidentais) pressupõe
"civilidade", isto é, a aceitação de regras de convívio que acolham a
grande maioria das pessoas. E também tolerância, isto é, o reconhecimento de
que as pessoas são diferentes e devem ter o direito de sê-lo, enquanto não se
metam a perturbar a vida alheia.
A linha que
separa o lícito é quase sempre tênue e muitas vezes difícil de perceber com
nitidez. Já li, certa vez, na Europa, um cidadão de maneiras muito polidas
justificando a pedofilia, em nome, se bem me lembro, do amor. E, de vez em
quando, na "defesa dos direitos dos animais", alguns amigos das
bestas chegam ao extremo de colocar bombas ou ameaçar de morte os pesquisadores
de laboratórios que manipulam ratos em macacos.
"Direitos
humanos" é uma bonita expressão. Mas, por trás dela, há de tudo, começando
por vocações autoritárias, exibicionistas, malandros, carreiristas e toda a
fauna dos deslumbrados, até a variedade doméstica comum dos bobos. Sem dúvida,
há um espaço válido para entidades humanitárias internacionais, como a Cruz
Vermelha ou o Crescente Vermelho Islâmico. E para inumeráveis associações
não-lucrativas, culturais, educacionais e por aí afora. Mas será que isso cobre
as ONGs que querem disputar um papel de comando na nossa governança, a ponto de
FHC ter criado o neologismo das organizações "neo-estatais"? Menos de
15% das ONGs registradas no Conselho Econômico e Social da ONU (Organização das
Nações Unidas) provêm de países em desenvolvimento (que já representam uns 4/5
da população da Terra). Ou seja, os Greenpeace da vida que vêm meter o bedelho
em nosso país promovendo ações contra a soja transgênica (um assunto
exclusivamente nosso) estão representados em excesso, no mundo, na proporção de
mais de 30 para 1! Viva a nossa Constituição de 88...
Em outras
partes, está se começando a debater mais seriamente até que ponto deixar ir a
pretensão dessas "organizações informais" _ cuja única legitimidade é
dada pela sua exclusiva autolegitimação, como quem diz: eu tenho o direito de
me meter na sua vida. No Brasil, os resíduos do subdesenvolvimento político
ainda intoxicam. Tem gente achando que essa história de ONG parece até
extragaláctica. Mais uns 10 ou 20 anos e provavelmente o nosso Congresso já
estará debatendo o excesso de intromissões da turma, por meio de uma CPI das
ONGs.O surto de organizações intermediárias entre o governo e o cidadão, por
iniciativa associativa destes, foi saudado por Tocqueville no século passado
como um dos "building blocks" fundamentais da democracia americana.
A iniciativa
da cidadania de um lado aliviava as tarefas do governo e de outro diminuía o
centralismo burocrático, às vezes despótico, dos modelos europeus de governo.As
ONGs têm uma função útil a desempenhar na medida em que desenvolvam o aspecto
associativo e mobilizem os cidadãos para substituírem os governos, que têm um
excedente de tarefas e um déficit de recursos e de capacidade gerencial. Mas
para isso são necessárias duas condições. Primeiro, que as ONGs não sejam meras
caçadoras de verbas públicas. Segundo, que não se intoxiquem com fanatismos
setoriais, coisa que vem acontecendo com frequência nos movimentos
ambientalistas, que entronizam a tal ponto as plantas e animais que o homem
passa a ser um detalhe incômodo. Viés paralelo se encontra em algumas ONGs de
defesa dos direitos humanos, que morrem de pena das 3.000 vítimas de Pinochet e
silenciam sepulcralmente sobre os milhares de fuzilados e 2 milhões de exilados
da ditadura de Fidel Castro.
Roberto Campos, autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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