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terça-feira, 2 de junho de 2015

Flamengo apela para administração "capitalista" para sair do buraco.

São Paulo - Na manhã do dia 27 de dezembro de 2012, o economista Eduardo Bandeira de Mello e o advogado Rodrigo Tostes entraram na sede da Procuradoria Regional da Fazenda Nacional, no centro do Rio de Janeiro, com uma missão cheia de ineditismo. O primeiro tinha na bagagem mais de três décadas de trabalho no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ­(BNDES). O segundo, quatro anos na consultoria PwC.
Bandeira e Tostes estavam prestes a se tornar, respectivamente, presidente e vice-presidente de finanças do Clube de Regatas do Flamengo. E eles chegavam à procuradoria para começar a pagar uma dívida de quase 400 milhões de reais do clube com o governo federal. Quando entraram no prédio, de terno e gravata, foram cercados pelos auditores como se fossem dois alienígenas.
“Vocês são mesmo do Flamengo?”, disse um incrédulo funcionário público. Alguém então pediu um cartão com a identificação do clube. Não tinham, já que só tomariam posse dali a algumas horas. A saída foi abrir o computador e mostrar uma reportagem sobre a eleição do Flamengo, ocorrida 24 dias antes, com a imagem dos dois. Só então os procuradores acreditaram: o Flamengo, por livre e espontânea vontade, tinha decidido pagar uma dívida.
A incredulidade dos procuradores se justificava: o Flamengo, time de maior torcida do Brasil, era também uma grande piada, símbolo do descalabro da gestão dos clubes de futebol brasileiros. O Flamengo estava no imaginário popular tanto pelos gols de Zico e pela torcida no Maracanã quanto pela arrasadora frase do meio-campista Vampeta: em sua passagem pelo Flamengo, ele disse que “o clube fingia que pagava e a gente fingia que jogava”.
Administrado de forma amadora e caó­tica, o Flamengo foi afundando numa dívida que chegou, em 2012, a 715 milhões de reais. O clube se tornou inadmi­nistrável. Naturalmente, títulos mais importantes foram rareando. Até que, em 2012, um grupo de empresários e executivos decidiu lançar uma chapa para a presidência do Flamengo, encabeçada por Bandeira de Mello. Era uma proposta inovadora para os padrões nacionais — usar, para valer, as técnicas de gestãoempresariais para consertar o Flamengo.
Passados quase 900 dias, a gestão “capitalista” de Bandeira e seus executivos comemora resultados notáveis — todos fora de campo, é verdade. De 2012 a 2014, as receitas do clube saltaram de 190 milhões para 327 milhões de reais, o que coloca o Flamengo no topo do ranking de faturamento do país­ quando descontadas receitas imprevisíveis, como venda de jogadores.
As despesas não cresceram, o que é uma vitória e tanto. O Flamengo anunciou em abril que teve lucro de 64 milhões de reais em 2014, o maior da história do futebol nacional. Em 2013, o prejuízo havia sido de 20 milhões de reais. Em 2012, de 62 milhões. No período, o clube pagou 224 milhões de reais em principal e juros de dívidas; o endividamento caiu de 715 milhões de reais para 577 milhões. Os salários estão em dia.
Nesses dois anos e meio, a nova diretoria encontrou todo tipo de esqueleto nos armários do clube. Um ex-dirigente conta que o Flamengo era “sugado por todos os lados”. O departamento de marketing era constantemente visitado por amigos e parentes de dirigentes e ex-jogadores, que pegavam camisas e outros “brindes” como se estivessem pegando roupa no armário de casa; ex-jogadores eram mantidos na folha de pagamentos e o salário era dividido entre eles e funcionários.
“Não é que os presidentes fossem necessariamente desonestos”, diz o ex-dirigente. “O problema é que eram amadores e delegavam poder para diretores amadores. Ninguém tinha controle e, lá embaixo, muitos funcionários se aproveitavam do clube.”
A medida mais urgente era reequilibrar as finanças. Havia um déficit previsto de 130 milhões de reais para 2013. A situação financeira era tão grave que, se a diretoria antecipasse todas as receitas previstas para o ano, o dinheiro para custear o clube e pagar as contas acabaria em maio.
O quadro se tornava mais grave porque as dívidas provocavam penhoras nas escassas receitas. Oficiais de Justiça apareciam a toda hora com ordem de levar alguns milhões de reais do caixa, que iam para fornecedores ou para pagar o salário de ex-atletas.
O plano tinha três bases: cortar cada centavo que fosse dispensável, renegociar as dívidas caras e de curto prazo e pagar as dívidas que pudessem provocar penhoras judiciais. A medida que mais chamou a atenção foi a dispensa de atletas com altos salários do futebol e dos esportes olímpicos. Mas, antes de colocar as finanças em dia, era preciso organizar o clube. E aí faltava o básico.
O Flamengo funcionava como uma empresa estatal: os departamentos eram feudos, e as informações de cada um deles, confidenciais. Uma troca de dados entre marketing e finanças, por exemplo, era na base do “toma lá da cá”. Para o departamento financeiro aprovar um pagamento de outra área, novas exigências eram feitas. Os contratos eram espalhados pela sede — em qualquer empresa, os originais ficam no jurídico.
Havia dezenas de funcionários registrados que mal apareciam para trabalhar — alguns foram enquadrados; outros, demitidos. Só na vice-presidência de administração foram encontrados 40 nessa situação. A área de tecnologia da informação era de uma fragilidade tal que qualquer hacker iniciante podia entrar no sistema e pegar informações confidenciais de contratos de jogadores.
Não havia orçamento nem controle do fluxo de caixa. O clube tinha depósitos em juízo de 5,5 milhões de reais em diferentes contas. Eram recursos para o pagamento de penhoras trabalhistas, mas ninguém sabia onde estava esse dinheiro (mais tarde, tudo foi centralizado numa só conta).
Para resolver esses problemas, a administração do clube foi profissionalizada e hoje funciona quase como uma empresa: os vice-presidentes amadores se reúnem para dar as diretrizes. A execução é tarefa de diretores remunerados.
Um deles é Paulo Dutra, de finanças, que passou pela consultoria EY e por empresas do setor elétrico, como AES Eletropaulo, Neoenergia e Light. “Futebol precisa ser gerido como uma empresa, como qualquer outra”, diz Dutra, que, como os outros diretores do Flamengo, tem metas e bônus por desempenho.
A segunda tarefa primordial era recuperar o crédito na praça. Para isso, era preciso conseguir as certidões negativas de débito, que atestavam que o clube não tinha pendências com o governo. A diretoria fez algo antes inimaginável: pegou os 60 milhões de reais de um contrato recém-assinado com a fornecedora de material esportivo Adidas e, em vez de contratar um punhado de jogadores, usou cada centavo para pagar dívidas fiscais.
“Não poderíamos tomar uma medida populista de curto prazo que iria prejudicar nosso projeto”, diz Fred Luz, diretor-geral do clube. A certidão foi obtida em 90 dias. Com ela, o clube fechou o patrocínio com a Caixa Econômica Federal — estatais só podem repassar dinheiro para empresas que não tenham obrigações com o Fisco. E, indiretamente, melhorou a imagem do clube, o que atraiu outros patrocinadores.
O faturamento com as empresas que estampam sua marca na camisa chegou a 90 milhões de reais ao ano — recorde no futebol brasileiro. “A marca Flamengo se torna mais valiosa quando é associada a um clube de credibilidade e boa gestão”, diz João Ciaco, diretor de marketing da Fiat Chrysler Automobile, dona da marca Jeep, que, no começo de maio, assinou contrato de patrocínio de 4,5 milhões de reais até o fim do ano.
Outra frente de ataque importante foi o departamento jurídico. No começo de 2013, o clube pelejava em cerca de 600 processos trabalhistas. Hoje, está na casa dos 80.
Quando as vitórias virão? Ter um clube lucrativo e menos endividado significa ganhar mais e perder menos dentro de campo? Até agora, não. O modelo da atual gestão é colocado em xeque sempre que o futebol não corresponde em campo. O pior ocorreu no começo do Campeonato Brasileiro do ano passado, quando o time engatou uma sequência de oito jogos sem vitória.
“A torcida tem pavio curto. Os maus resultados aparecem e tudo que fazemos vira uma porcaria”, diz Wallim Vasconcellos, ex-vice-presidente de futebol. Ali houve também uma pequena crise na diretoria. “Até aquele momento, o grupo era unido. Com as derrotas, alguns passaram a jogar a culpa nos outros”, diz um ex-integrante da diretoria.
O risco de rebaixamento fez com que o clube liberasse uma verba extra para a contratação de jogadores e do técnico Vanderlei Luxemburgo. Deu certo. “Seria muito difícil manter a recuperação se o clube fosse rebaixado”, diz Rodrigo Tostes. Para evitar problema parecido em 2015, a diretoria fez um empréstimo de 4 milhões de reais para contratações.

Pressão pela vitória

As crises mostram uma verdade tão antiga quanto verdadeira — clubes de futebol não existem para dar lucro, mas para ganhar. Por isso é tão difícil ver casos de clubes que mantiveram, por anos a fio, uma gestão financeira racional. A tendência é sacrificar o futuro em nome de uma vitória no domingo seguinte.
Um caso recente é o Corinthians. Em 2012, o time venceu a Libertadores e o Mundial, os dois títulos mais desejados por clubes brasileiros. Naquele ano, faturou 325 milhões de reais. Com títulos e dinheiro, achou que podia abrir os cofres.
Os custos do futebol em relação às receitas, que eram de 65% em 2012, saltaram para 92% em 2014, o que fez com que o clube tivesse um prejuízo de quase 100 milhões de reais. Em 2015, os salários dos jogadores começaram a atrasar. Em maio, o time foi eliminado da Libertadores pelo modestíssimo Guaraní do Paraguai.
No ano passado, o clube faturou, excluída a transferência de atletas, 217 milhões — queda de 33% em relação a 2012. O Santos, que surgiu como exemplo de boa gestão no início da década, hoje vive em crise. Um levantamento do consultor Amir So­mog­gi com 20 clubes mostra que o Flamengo foi o único dos times do eixo Rio-São Paulo a fechar 2014 com as contas no azul.
Os outros são Atlético Paranaense, Goiás, Vitória e Avaí. “Quando os clubes gastam mais do que arrecadam, estão comprometendo o futuro e prejudicando os torcedores lá na frente”, diz o economista Cesar Grafietti, do Itaú BBA, autor de relatórios sobre a saúde financeira dos clubes brasileiros.
Transformar os bons resultados financeiros em vitórias será o grande desafio dos capitalistas do Flamengo. Para sanear o clube, a diretoria montou times apenas razoáveis, contratando jogadores desconhecidos ou pouco aproveitados. Ganhou um estadual e uma inesperada Copa do Brasil, mas flertou com o rebaixamento no Campeonato Brasileiro por dois anos seguidos e, neste ano, não chegou nem às finais do Carioca.
Com eleições no fim do ano, um desempenho pelo menos razoável no Brasileiro é crucial para que o atual projeto se mantenha vivo — ainda que pedindo mais paciência da torcida. “Em três anos, nossa situação financeira vai permitir montarmos grandes times e lutarmos por todos os títulos”, diz o presidente Eduardo Bandeira de Mello.
Em apresentação feita a patrocinadores no dia 18 de maio, os dirigentes mostraram um plano ambicioso para 2020: pelas projeções, a receita ultrapassará os 600 milhões de reais e a dívida ficará abaixo de 300 milhões. Com esses números, o clube poderia, aí sim, investir pesado no futebol.
De 2017 a 2021, o Flamengo espera ganhar quatro campeonatos estaduais, cinco títulos nacionais e pelo menos uma Libertadores da América — tornando-se hegemônico, no Brasil, como os riquíssimos Real Madrid e Barcelona na Espanha. O futebol é o esporte mais popular do mundo pela sua imprevisibilidade.
Um campeonato pode ser decidido numa bola na trave, um erro do árbitro ou um gol aos 43 do segundo tempo. Ter mais dinheiro do que os outros não é garantia de nada. Mas, para evitar que o Flamengo ande para trás — e para fazer com que outros clubes sigam seu exemplo —, uma coisa tem de andar com a outra: dinheiro no bolso e bola na rede.

Fonte: Exame

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